terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Ciclo III - Ocaso

Chegou uma vontade de virar pintor. De criar laços com a aquarela, de eternizar os poentes com tons de laranja. Tenho visto por aí tantos crepúsculos, tantas coisas que, mesmo belas, se vão. Os raios, as estrelas, a primeira lua, tudo se compõe na paisagem do fim de um ciclo. Queria que o sol ficasse ali, grampeado no horizonte, sem saber se vai ou volta, como se tivesse decidido de última hora ficar para o jantar. Mas ele se vai. É um belo espetáculo. Eu poderia tirar uma foto e guardá-la no bolso, tendo para sempre o meu espetáculo privado. Toda hora seria poente. Mas faz mais sentido querer pintá-lo. Obrigá-lo a posar para o registro, talvez assim finalmente ele me contemplaria de volta. Passar algumas horas aprisionado nos segundos de seu descesso. Cuidadosamente, dosar os tons brancos com os coloridos para obter o melhor resultado. Conversar com o sol, entender porque ele precisa ir. Garantir que ele volte.

Anda, Luzia! Você está mais cabisbaixa que eu. Mandaram parar o som, eu ouvi. O carnaval acabou, o sol já se pôs, mas dê cá a mão que ainda sobrou frevo aqui na alma, e pularemos até o amanhecer. A noite também tem cor, se necessário te pintarei em tons de cinza. Não tenha medo de se perder, as árvores não mordem. Na dúvida, olhe para os vaga-lumes; são como os nossos espíritos, piscam de tempo em tempo para sinalizarem vida. E se seu pé doer ao longo da jornada, pare e pinte: o sol já está a nascer.


Queria eu estar em companhia das cores; em vez disso, uso o recurso que tenho à mão. As letras pingam no papel, como um escarro que oprime a razão. No entanto, não fazem fidelidade á cena. É mesmo necessário pensar o tempo todo, construir sentenças mesmo que dadaístas? Não há tradução aqui, não quero ter que inventar uma linguagem nova. Tudo o que eu quero é pintar. Pintar sem falar, sem ter que esmiuçar as ações, justificar os pensamentos. Liberdade pra se pausar. Pra se distanciar da cena, pra obter um ponto de vista que faça sentido. Procuro o sentido, mas só enxergo as cores. 

Pisco o olho, e estou só. O sol está a pino. Não há cocuruto que aguente. É hora de botar o cavalete nas costas e seguir viagem. O quadro ainda está branco, minha aquarela em madeira crua. O sol queima, incomoda, eu o amaldiçoo. Ganho aí algumas horas de descanso, de lucidez. Meus fantasmas voltarão no próximo poente. Luzia volta ao anoitecer.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Ciclo III - Falência

Eu, aqui, hoje, declaro a minha falência de espírito. Declaro ao mundo, ao mesmo tempo admitindo, que uma depressão tomou conta de minhas veias. E admito, porque cansei de negar. Já não vale mais a pena negar a procrastinação e o arrastar de pés. Negar o naufrágio e a ausência da âncora, que me deixou à deriva por tanto tempo. Não vale mais a pena negar a fraqueza e o descontrole. Negar que entrei em uma casa sem chão. Negar que, involuntariamente, afastei todos, sem encontrar energias para recuperar o caminho perdido.

Antes eu tinha a desconfiança de que tinha me perdido no meio do caminho. Agora tenho a certeza de que ainda estou no mesmo lugar. Apenas parei. O mundo seguiu adiante, e esqueceu de me levar na rotação. Esqueci-me de evoluir, transfigurar-me no homem do futuro. Minhas vidências tornaram-se turvas. Meu tempo, sem expectativas. Acostumei-me a perder. O legado, pouco a pouco, se desconstruiu, e eu apenas observava, como se estivesse assistindo da platéia a queda de um personagem. Os papéis, se perdendo; os amigos, se distanciando; o amor, atingindo o seu ápice de descrença.



É duro despir-se do orgulho e confessar ao papel a vergonhosa decadência. Mas entrego-me ao conselho de que o primeiro passo é a aceitação. Constrangido, ferido, e exausto, venho eu colocar meu pé direito na trilha da recuperação. Não aceito mais ser movido por inércia. Quero voltar a ver o mundo girar como antes. Quero sorrir ao sentir o calor do sol. Quero vibrar com o contato humano. Não creio estar pedindo demais. No fundo, peço apenas para voltar a ser como antes.

Na saída, fecho a minha alma para manutenção. Dou uma boa varrida, e jogo fora a poeira. Cato os cacos, e pacientemente, tento colá-los. Não dá pra mentir, alguns se foram para sempre. Doei essas partes de mim ao tempo. Mas as que sobraram, cabe a mim reconstruí-las a partir da essência. Essa resistiu bravamente, mesmo após tantos e tantos baques, e, alguém já me garantiu, ainda está intacta para o reinício da escrita.





terça-feira, 18 de junho de 2013

Ciclo III - Metalinguagem



Agora eu estou assim. Transformando em sentenças, nem sempre de fácil entendimento, aquilo que mexe com os estratos do meu espírito. Materializando sentidos em palavras e jogando-as ao vento para serem levadas e chegarem aos olhares de quem há de me entender. Apontando um lápis, ou tirando a tampa da caneta, e fazendo do grafite ou tinta meus mais íntimos amigos, que falam por mim as felicidades, os temores, as dores, as empolgações, e as quedas que me deparo pelo caminho.

Caminhei bastante para chegar até este ponto. No pico desta montanha imaginária, olho ao redor e vejo os vales de incertezas que me motivaram a arriscar subir ao topo e permanecer firme durante a escalada. Se eu ficasse de pés no chão ao invés de encarar a montanha, teria a segurança de nunca cair, mas nunca a recompensa de ver o mundo daqui do alto. Muito me martelaram, muito me lapidaram, muito me abriram, para que eu aprendesse a andar. Já que andei, agora preciso gritar ao tempo que sobrevivi e sinto-me apto para novos dias. 



Recupero na escrita partes de minha essência a qual às vezes me esqueço da coexistência; e quando dou pela falta, temerosamente julgo tê-las perdido para sempre. A parte que fala pouco, mas sente muito. A parte que se mostra ao mundo sob uma máscara instrospectiva, mas que fervilha de pensamentos e é capaz de implodir caso lhe seja negado o direito de resposta. Alivio-me por saber que elas ainda existem. Na verdade, minto quando digo que achava que estas tinham morrido. Ouvia eu seus roncos, frutos de uma grande hibernação, mas eu permanecia ansiosamente consciente de que uma vida existe para trazer esses lados à superfície, cedo ou tarde. Senti falta, e espero que o remanso que calou tal vozes chegue com menos intensidade desta vez.

Neste instante, sofro com a pressão de dar um bom final a um texto que não consigo ver em que momento começou. Se não consigo definir a largada de minha ideia, julgo não ter cabimento querer botar um ponto em algo que é ciclo e pertencente às regras do sem-fim. Melhor entregar a ultima frase de susto,  assim, como um pensamento que acaba e nem se percebe quando ocorreu. Os meus estão bombardeados de cores e formas abstratas, e teimam em não cooperar com a coerência em serem traduzidos para este plano. Decreto a minha falha, mas não a desistência. Pois agora aprendi a falar e há uma vida inteira lá fora aguardando a minha expressão.

Ciclo III - Mágoa



Passo a acreditar que te negaram o acalentador leite materno no berço de sua negra história, e no lugar, bebeste fel. Pois foste contaminado em algum momento com o amargor do mundo, e agora seu hálito cheira a inveja, a rancor e a negatividade. Não satisfeito em manter para si esta aura de cores escuras, tentas contaminar eu e ao mundo com suas ideias infelizes. E eu me nego a participar de tal incoerente farsa. As cortinas se fecham, e permaneço na plateia, apenas alheio. Ou assim eu pretendia. Calúnia é a palavra da vez. Rapidamente tu me enxergas na multidão e tenta me trazer ao palco. Apenas tenta. Não te atrevas a tentar novamente!

Se diz iluminado, mas é capaz de enegrecer até o mais alvo olhar infantil com a sua noção ferina. Se diz glorificado, mas o seu lado cruel está tão exposto e vivo que consegue escalpelar de mim as camadas mais sombrias, deixando-as igualmente expostas e vivas, e infelizmente, livres para devolver reciprocamente a carga negativa que as agitaram. Sinto daqui o seu perfume, que me causa ânsias, e a qual eu preferia cheirar enxofre a ser obrigado a recordar que tal aroma existe; que me traz na memória a tua inveja perante os amigos conservados e a uma estabilidade; o teu ódio, até então não justificado e fruto de alguém que prefere a guerra à calmaria; a tua imposição, ideia fútil de que exerces algum tipo qualquer de influência, mal sabendo tu que tuas ideias erradas são motivo de risos e exemplos de caminhos a não se seguir.


Deveria eu congratular-te por ter tido a capacidade de abalar o meu juízo a ponto de me fazer colocar no papel as pronuncias dessa tempestade; poucos o conseguiram. Agora tenho consciência de que raivas também me fazem extravasar as palavras para que eu fique oco, como os teus argumentos. Não é mesmo fácil uma pessoa perder a expectativa de meu perdão no horizonte, ganhando, ao invés desse ímã de boa energia, desprezo e o desejo de uma presença dolorosa no lugar de apenas ausência.

Obrigado por ser um espelho retalhado e manequim vivo da alma a qual não quero, sob hipótese alguma, encontrar pontos em comum com a minha. Pude notar em quais buracos tropeçaste, olhando eu atentamente e pulando-os ao por eles passar. Se eu soubesse anteriormente com o que estava prestes a lidar, teria eu , naqueles dias em que te vi tropeçar, feito questão de passar indiferente do outro lado da rua no lugar de inocentemente oferecer-te a mão como anteriormente fiz. Mas já que o fiz, não devo eu lamentar-me, e sim retirar, se possível, o mel que resta no meio desse piche. Porque até com a mais vil das víboras extrai-se um aprendizado: nesse caso, a cultivar no coração uma mágoa de estimação.

Ciclo III - Até



Haverá o dia em que abrirá para mim um espaço no meio de tal densa névoa para deixar passar os raios de sol que me curarão da cegueira histérica a qual fui acometido e acostumado. Não precisarei mais tapar o rosto para me proteger da saraiva, pois este será o dia de minha redenção e festejado apenas com paz. Livre dos medos dos caminhos foscos, e certo quanto ao incerto, pingarei o ponto final de meu prólogo para começar a escrever a primeira frase do primeiro capítulo da saga que hei de clamar como minha. Nesse tempo, ascenderei ao topo, despido e limpo da fuligem que se acumulou no bolso do meu viver, pois não mais me preocuparei em carregar os fardos de ter que ser; apenas em ser.

Até lá, eu vou rolando em queda livre; aceitando a decadência; arruinando meu corpo; despetalando meu futuro; ignorando os meus amparos; rejeitando as mãos estendidas; desdenhando de minha matéria; dormindo com hostis; colecionando contradições; omitindo opiniões; me disfarçando de pessoa em pessoa como em um show de máscaras, esquecendo no meio do trajeto qual delas é a minha de nascência. O corpo encontra-se em dormência, e a alma em rigidez.


Chegará o dia em que virá até mim em forma de homem a pele quente que trará junto um calor como se fosse o próprio sol, que derreterá os meus anseios juntamente com o gelo desse aposento frio que se formou e eneva a minha alma. Tocarão nas minhas linhas mãos enrugadas e calejadas de tanto trabalhar e viver em cima das experiências dessa vida que mais mata que felicita, mas ao mesmo tempo serão mãos que oferecem conforto e paciência para um espírito banhado de inquietude e que transborda pela boca desconfiança na vida real e ilusões de um futuro melhor, mesmo sabendo que a ideia em si já pode ser considerada uma ilusão. Nessa hora, perderei o medo adquirido por ilusões, pois não mais temerei estar vivendo uma coisa real.

Enquanto isso, continuarei optando por trilhar os caminhos pedregosos; aprendendo mais coisas ruins que boas; tapando os ouvidos, fechando os olhos, e me calando diante da razão; despaginando  as chances; desassinalando as opções; limitando as escolhas; cavando minha caverna; me escondendo do mundo; desvencilhando de terceiros; escolhendo sempre um novo costume ao sair à vista dos demais, esquecendo no meio do caminho como é estar nu e livre do peso de ter que ser alguém. O corpo está em letargia, e a alma em frigidez.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Ciclo III - Manifesto

Se as palavras mentem, eu vos digo: os olhos também. A boca engana em proferir vocábulos de tranquilidade, de constância e esmero. Os olhos enganam ao insistirem em permanecer tão secos quanto o estado da alma a que serve de espelho. Por eles saem olhares de camuflagem, para esconder do mundo a fragilidade da pessoa em questão; saem olhares de cansaço, ante ao tempo desprovido de eventos fascinantes que os façam brilharem de fascinação; saem olhares sem vida, para evitar indagações e interesse de terceiros. Só não saem as lágrimas.

E é neste ponto que os olhos incitam a sua pegadinha e enganam os outros. O público clama pelas lágrimas. Elas revelariam o furo do poço de insensibilidade que os olhos deixam transparecer. Levaria a um auge de tristeza, trazendo a tempestade que antecede a bonança. Iria levar embora as coisas sujas, ficando apenas os remorsos e a vontade de consertar as coisas. Renovaria as esperanças perdidas de haver uma mina de sensibilidade por trás de toda a aparente frieza.

Mas não é o que acontece. Os olhos são, além de mentirosos, orgulhosos. Já até se esqueceram de como é chorar. A aparência continua fria e indiferente, aos olhos dos outros, como uma armadura externa que protege o mundo exterior do espírito colidente e contraditório que ali jaz. Enquanto os olhos não choram, nunca há a real certeza de que algo está errado. A fonte seca, as lágrimas petrificam juntamente com o coração, e todo o resto continua em enganação. E assim corpo e mente continuam no inútil jogo de fingir pro mundo que tudo está bem.


Sincero é o corpo, que pede cama quando se depara com mais um dia cinzento e rotineiro, já sabendo que não terá energias para suportar aquilo mais uma vez. Sincero é o sono, que pede sonhos como escape quando o mundo te decepciona. Sinceros são os braços, que permanecem quietos e sem expectativas quando percebem que não há pessoas ao redor para um revitalizante abraço. Sinceras são as cicatrizes, externas ou internas, que cantam constantemente a sinfonia de dor passada, te impedindo de cair no conto dos velhos erros. Sinceros são os outros, que se calam e fingem ler nos seus olhos alegria e satisfação.

E quem mais mente na história é você mesmo. Se olha no espelho, diz que naquele dia tudo será diferente, que você sair de casa, sentir o calor do sol e se alegrar com isso, vai rever velhas pessoas e elas lhe trarão o conforto que você precisa; mas aí se lembra que não gosta de sol e que as pessoas trarão cobranças, conflitos e julgamentos no lugar de interesse . Então qual é o sentido? Sinceridade no corpo e mentira nos olhos, melhor continuar se escondendo do mundo mesmo. Com pesar, porém sem lágrimas.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Ciclo III - Paris


Um dia vou dar Paris à minha mãe. Desde a minha infância recordo-me de cenas dela imaginando como é o cheiro de lá. Ela ouve os carros de Paris passando debaixo do Arco do Triunfo, sente seus pés cansados de tanto andar pelos corredores da clássica coleção do Louvre. Se imagina dando rodas, olhando as árvores de lá, as madames, os músicos na esquina tocando "Berceuse" (mesmo que ela nunca tenha ouvido Berceuse). Ela se imagina sendo obrigada a pronunciar um bom Merci Beaucoup nos grandes restaurantes da alta culinária, comendo ratatouille e bebendo um bom vin. Ahhh, como ela sonha. Desde criancinha eu lembro dela falando de Paris pra mim. Lembro até o dia que ela pediu folga pro trabalho para assistir "Passaporte Para Paris" comigo.

O problema  é que minha mãe na verdade não quer ir para Paris. Ela morre de medo de avião. Acha que vai olhar as nuvens e desmaiar achando que o céu está caindo em cima dela. Tem fobia de altura. Ao mesmo tempo ela vai que não vai para Paris porque se acha indigna de se dar ao luxo de viajar para o exterior. Algo em sua alma se encravou desde a mocidade, um estigma que a diz no ouvido que ela nasceu para viver pelos filhos. Ela não quer ir para Paris, mas quer que seus filhos consigam ir para Paris. Desde aquela propaganda que entoava "os seus avós fizeram tudo que puderam para dar aos seus pais aquilo que eles não tiveram...os seus pais fizeram..."  ela não conseguiu retornar ao estado de antes. Fará tudo que puder pela para mandar sua prole, e mais ainda.


Mas os filhos não querem ir para Paris. Assim como os seus avós também não queriam ir para Paris. Meus avós queriam ir para Salvador, e conseguiram (ou tentaram ao máximo) mandar meus pais para lá. Meus bisavós desejavam um lugar menor ainda. Eu desejo o Rio de Janeiro. Parece que é uma herança que se passa de pai para filho, a arte de olharem o mundo através dos olhos de seus filhos. Pelo menos é assim que deveria ser.

Mas eu ainda consigo desejar um fato de volta por minha mãe. A enorme vontade que eu sinto de entregá-la à Paris. Levando-a do meu lado no assento da janela do avião, para enxergar as alturas e sentir que não está morrendo, mas voando. Segurando minha mão como seu a estivesse puxando através do ar. Pousando os pés, e sentindo os pelinhos da nuca arrepiando quando a aeromoça que parece Amélie Poulain sussurrasse um "bienvenu" em seus ouvidos. Sentindo o cheiro da Europa; o frio do inverno, mas o calor de Paris. Minha mãe está no Paraíso. A consigo ver sorrir. E eu estou no paraíso. Ali consigo sentir uma verdadeira felicidade. O quanto eu lutei para ver raiar este caro sorriso!